Escravidão, do autor Laurentino Gomes

Profª. Ma. Carolina dos Santos Rocha
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Seduc/SP
E-mail: carolrocha83@yahoo.com.br


Fonte: Globo Livros

Escravidão é o primeiro livro de uma trilogia escrita por Laurentino Gomes, jornalista e autor de três títulos sobre História do Brasil 1822, 1808 e 1889. O autor explica o projeto: a história do primeiro livro da trilogia tem seu início na África, comenta sobre outras formas de escravidão e também sobre a travessia de seres humanos escravizados pelo Atlântico. O segundo livro, ainda sem nome, deve concentrar sua narrativa no auge do tráfico negreiro e o terceiro tratará sobre o movimento abolicionista, o tráfico ilegal e o seu legado nos dias atuais. 
Ainda na introdução, Laurentino Gomes faz uma breve explicação sobre “sutilezas linguísticas” para explicar o uso de alguns termos em desuso, como por exemplo, a coexistência dos termos “escravo” e “escravizados” em sua obra. A justificativa para tal uso, segundo ele: “é preciso reconhecer que determinados vocábulos já se incorporaram aos usos e costumes da língua portuguesa e podem ser livremente utilizados em favor de uma fácil compreensão dos leitores”.
Diante disso, essa resenha se propõe discutir a escolha de certos termos e a omissão deles, pois como sabemos, linguagem é discurso. Dessa maneira, devo expor ao longo deste texto alguns termos polêmicos utilizados pelo autor com objetivo de trazer complexidade à questão, propondo o debate ao leitor. Assim, por exemplo, ao fazer a escolha do termo “mulato” por diversas vezes, o autor assume duas possíveis posições: ingenuidade por escolher um vocábulo a bem da compreensão de um Leitor ideal, universal e de baixa complexidade ou pode assumir sua ignorância acerca dos estudos sobre raça enquanto construção social. 
“Mulato”, segundo alguns dicionários, é descrito como descendente da mistura entre branco e negro, sinônimo de mestiço. O termo mestiço também deve ser contextualizado à luz da influência da teoria eugenista de Arthur de Gobineau, diplomata francês em missão no Brasil na época de D. Pedro II. Em sua teoria, a sociedade brasileira era degenerada e com a miscigenação produzia indivíduos estéreis, os mulatos. Assim, a questão da miscigenação no Brasil só foi resolvida posteriormente no século XX, na década de 30, com a manutenção dos ideais de Gobineau e o advento do racismo científico. O intuito era misturar até desaparecer a raça considerada inferior: as pessoas pretas. Essa política ficou conhecida como política de branqueamento, cuja iconografia é conhecida por meio do quadro A redenção de Cam (1895), de Modesto Broncos, no qual uma mulher preta retinta estende as mãos aos céus em agradecimento por sua descendência: a filha mestiça casa-se com homem branco e gera uma criança branca. 
Ao fazer certas escolhas lexicais, bem como ideias em desuso por parte de alguns intelectuais das relações étnico-raciais e, repeti-las exaustivamente em sua obra, Laurentino assevera ainda mais a afirmação feita na introdução deste primeiro volume de sua trilogia: “Como repórter e pesquisador, posso e devo observar e ouvir os diferentes olhares e vozes, admitindo, porém, que seria indevido ou falso da minha parte tentar, por exemplo, expressar na sua totalidade a experiência de dor e sofrimento do ‘olhar negro’, pelo qual nunca passei”. 
De fato, o autor não sente e não se propõe à experiência, pois fez a sua escolha: traz como argumento de autoridade um rol de historiadores com único ponto de vista, o eurocêntrico. Haja vista que não há menção, durante a descrição desses fatos históricos, de estudos a respeito das nações nativas de África e do Brasil sob ponto de vista destes. Talvez o leitor tenha curiosidade e em determinado ponto da leitura possa se perguntar como as etnias dos povos originários se organizavam socialmente ou quais eram os saberes tecnológicos provenientes dos bantos, hauçás, benguelas e tantos outros povos vindos de África detinham antes da chegada dos europeus, no entanto, essas curiosidades não foram consideradas em Escravidão
É também na introdução de Escravidão que o autor descreve esse momento histórico e vergonhoso da humanidade utilizando as palavras “imigração forçada” no lugar de “sequestro de seres humanos”. Talvez o termo utilizado coubesse a refugiados de guerra ou povos em situação de extrema pobreza que imigram, à revelia, em busca de sobrevivência, o que não era o caso das etnias existentes no continente que hoje chamamos de “África” do século XV. 
Refletindo sobre a escravidão na atualidade o experiente jornalista afirma que: “nada disso é surpreendente, considerando-se o alto índice de pobreza prevalente no planeta”. Assim sendo, escravizar um ser humano no século XXI se justifica pela pobreza? Os limites éticos desenvolvidos pelo conhecimento científico podem ser esgarçados a qualquer sinal de crise econômica? O livro de Laurentino Gomes não traz essas problematizações. Embora com vasta referência bibliográfica, os capítulos de Escravidão descrevem fatos históricos fazendo uso de argumentos de autoridade de um único ponto de vista. Cito como exemplo a discussão do termo “descobrimento”. Laurentino Gomes lança mão da autoridade de Luiz Felipe Thomaz, historiador português, sem a contraposição de um historiador latino-americano: “Os portugueses não inauguraram o paraíso na Terra, mas deram origem ao mundo moderno tal como o temos, com os defeitos e virtudes inerentes a toda construção humana, [...] Portanto, não haveria problema algum em batizar o Museu dos Descobrimentos como Museu dos Descobrimentos”. O leitor poderia se perguntar a respeito da definição do conceito “moderno” e quem foi que o estabeleceu, ou ainda, se questionar se povos originários da América não dispunham de uma organização e cultura que contribuíram para a “origem do mundo moderno tal como o temos hoje”. No entanto, esses questionamentos não são considerados em Escravidão.
Ainda na esteira de conceitos polêmicos discutidos há muito tempo por historiadores, o autor expõe explicações para o “malogro da escravidão indígena”. No capítulo “O massacre” é descrito ao leitor a chegada dos europeus às Américas. Doenças, guerras e a resistência ao trabalho exaustivo seriam as causas deste malogro. Sobre a escravização dos indígenas, o autor ainda afirma: “os indígenas, além disso, estavam pouco adaptados ao trabalho exaustivo nas lavouras de cana, rebelavam-se e fugiam com frequência”.
Mais à frente, no capítulo “O negócio”, no qual o autor descreve a grande máquina burocrática criada para o tráfico de seres humanos, há a seguinte generalização a respeito do trabalho realizado por nativos de África: “Angolanos eram considerados dóceis e bons trabalhadores nas lavouras e no serviço doméstico; cativos oriundos da Costa do Ouro, ou da Mina, eram bons na mineração de ouro e diamante. Da Guiné, chegavam africanos experientes nas atividades pecuárias e do pastoreio”.
Assim sendo, as duas afirmações — em relação à escravização indígena e negra — em contraponto levariam a alguns questionamentos não discutidos neste primeiro volume da trilogia, tais quais: o negro não resistiu ao trabalho escravo e por isso a escravidão durou três séculos? Só o indígena não se adaptou ao trabalho escravo? O negro estava adaptado ao trabalho exaustivo e por isso a escravidão se justifica? Ainda no capítulo “O negócio” o autor faz mais uma generalização em relação aos negros: “Alguns embora fossem bons trabalhadores eram considerados arrogantes, rebeldes e, portanto, mais perigosos”. O motivo pelo qual eram assim considerados também não é discutido, ganhando ares de verdades absolutas.
No capítulo “Brasil” da referida obra historiográfica é descrita a importância do trabalho escravo para a economia e a hierarquização entre os escravizados. Segundo tal descrição, os trabalhadores do campo eram mais desprezados e os mais especializados eram “mulatos” ou “crioulos”. A respeito dessa hierarquização há uma vasta referência na área dos Estudos Culturais não mencionada por Laurentino Gomes, mas que pode tensionar a análise dessa hierarquia racial citada em Escravidão
Entre os estudiosos dessa área, podemos citar o jamaicano Stuart Hall e o indiano Hommi Bhabhba, que em linhas gerais problematizam a formação das identidades nacionais. Em A identidade cultural na pós- modernidade (2011) Hall procura responder se a identidade nacional está em crise e observa os fenômenos da globalização e da imigração. Conclui, a respeito do sujeito moderno, que sua identidade foi forjada por diversas etnias e, portanto, trata-se de uma identidade fragmentada. Dessa maneira pensando, se enquanto nação somos resultados da mistura dessas etnias, também podemos supor que as tensões criadas pelos portugueses entre os descendentes dos escravizados também fazem parte da nossa construção de identidade nacional e devem ser discutidas e não naturalizadas.
Em seu livro O local da cultura (1998), diante das tensões provocadas entre as fronteiras culturais e mistura das etnias, consensual ou violenta por muitas vezes, Bhabhba didatiza o papel do crítico literário: [...] o crítico deve tentar apreender totalmente e assumir a responsabilidade pelos passados não ditos, não representados, que assombram o presente histórico" (1998, p.34). Sendo assim, é possível questionar a omissão do autor de Escravidão a respeito dessas tensões sugeridas a fim de reparar alguns danos históricos provocado por silenciamentos e naturalizações.
Outro capítulo tratado de modo bastante questionável e polêmico é aquele reservado à imagem de Zumbi dos Palmares. O autor se baseia na obra Três vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro (2012) dos historiadores brasileiros Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira. Segundo esta obra, Zumbi foi considerado ao longo da história como uma ameaça aos portugueses e ao regime escravocrata; depois, uma ameaça à civilização e, por fim, devido ao movimento abolicionista, Zumbi foi considerado representativo dos oprimidos e seguiu assim, no período de redemocratização, no qual os movimentos de esquerda o elegeram de uma maneira fantasiosa, herói nacional. Laurentino Gomes conclui o capítulo, com base em uma única fonte supracitada, afirmando em relação a Zumbi dos Palmares que: “Infelizmente, tudo isso é fruto de mera idealização romântica de uma história pouco conhecida e documentada”.
No capítulo denominado “O destino de Jinga”, o leitor depara-se com o relato biográfico a respeito de uma rainha africana reconhecida e homenageada em Angola como símbolo da emancipação deste país; no Brasil, é celebrada em festas populares e nos EUA, é vista como um símbolo feminista. Embora reconheça a existência da rainha Jinga, ou “Ana de Souza”, seu nome cristão, devido a existência de “[...] documentos mais do que suficientes sobre ela, entre os quais numerosas cartas de sua autoria [...]”, o autor conclui o capítulo afirmando que se trata de uma lenda que cruzou o Atlântico. Restam, portanto, a partir dessa afirmação, algumas questões latentes: Por que as imagens de Zumbi dos Palmares e Jinga são consideradas lendárias e fantasiosas? Em razão da inexistência de documentos? Por que as narrativas a respeito de Domingos Jorge Velho, o famoso bandeirante, não apresentam o mesmo crivo? Há documentos suficientes para comprovar sua existência? Quem os escreveu? Os portugueses?
Assim, sem considerar a memória de um povo como parte importante da História, assim como os documentos também o são, o autor desmerece a importância dos símbolos de resistência, como a rainha Jinga e Zumbi dos Palmares, à formação da identidade nacional. Pois, sabemos que não cabe à História julgar Zumbi, mas compreender a apropriação de sua história à luz do presente. Afinal de contas, qual é a intenção de Laurentino Gomes: trazer informações que elucidem nosso passado ou usá-lo para vender best sellers?




Mestra pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Possui graduação em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH/USP. Atualmente é Professora de Educação Básica II na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Seduc/SP. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira (Currículo Lattes). Idealizadora do clube de leitura Café Preto (Facebook / Instagram). Neste blog, escreve na coluna Literatura. 





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